A série Mega Man levanta questões filosóficas sobre a definição de racionalidade e os riscos do avanço da tecnologia.
O escritor Isaac Asimov (1920 - 1992) elaborou, no livro “Eu, robô”, as
três leis da robótica, que podem ser formuladas da seguinte maneira: 1)
um robô não pode ferir um humano ou permitir que um humano sofra algum
mal; 2) os robôs devem obedecer às ordens dos humanos, exceto nos casos
em que tais ordens entrem em conflito com a primeira lei; e 3) um robô
deve proteger sua própria existência, desde que não entre em conflito
com as leis anteriores. Asimov tinha um propósito óbvio com essas
normas: garantir a convivência entre humanos e máquinas. Apesar de
inseridas em um contexto ficcional, as leis da robótica (criadas em
1950) se tornaram regra para os estudos de inteligência artificial. Isso
não impediu, contudo, que o imaginário popular se voltasse para o
rompimento desses princípios, e desde então surgiram diversos produtos,
em mídias distintas, explorando a possibilidade de um embate entre
androides e seus criadores. Mega Man, criação da Capcom, lançada para o NES em 1987, se encontra exatamente nesse contexto.
Os limites da razão
Em Mega Man acompanhamos os desdobramentos do conflito entre dois
cientistas geniais, Dr. Albert Wily e Dr. Thomas Light. Inicialmente os
dois teriam desenvolvido juntos os Robot Masters, uma série de robôs
inteligentes que teriam como função contribuir para o bem da humanidade.
Contudo, Dr. Wily se apossou da criação e tentou usá-los em um plano de
dominação mundial. É aí que Mega Man, até então um androide assistente,
é modificado por Dr. Light para impedir os planos de Wily.
A história, apresentada dessa maneira, mostra um tipo de estrutura maniqueísta bem conhecida, estabelecendo a polaridade simplória entre o bem e o mal. No entanto, como quase tudo mais na vida, a divisão entre certo e errado não é tão simples assim, e Mega Man nos oferece a possibilidade de refletir sobre o sentido último do desenvolvimento da ciência e da racionalidade.
A história, apresentada dessa maneira, mostra um tipo de estrutura maniqueísta bem conhecida, estabelecendo a polaridade simplória entre o bem e o mal. No entanto, como quase tudo mais na vida, a divisão entre certo e errado não é tão simples assim, e Mega Man nos oferece a possibilidade de refletir sobre o sentido último do desenvolvimento da ciência e da racionalidade.
Dr. Wily e Dr. Light, respectivamente. |
A partir da obra do filósofo francês René Descartes (1596 - 1650) a
definição de humano se encontra, quase que exclusivamente, atrelada à
capacidade de pensar. É esse justamente o sentido do cogito cartesiano (“Penso, logo existo”). Descartes, que procurava uma verdade inabalável para rebater o ceticismo, encontrou no cogito
o ponto que separa a humanidade de todos os outros seres. Ainda que
nossos sentidos nos enganem, ainda que estivéssemos em um sonho ou em
uma simulação como a Matrix, ainda que nada fosse real e
pudéssemos duvidar de tudo que nos cerca, ainda assim teríamos uma
certeza: nós existimos, pelo simples fato de que podemos pensar e
duvidar do que somos e percebemos.
Essa seria, portanto, a diferença entre humanos e máquinas. Um robô,
ainda que possa ter uma programação avançada e a capacidade de realizar
tarefas que não conseguimos executar, não é capaz de pensar sobre si
mesmo, e nem pode colocar em dúvida sua existência. Bem, pelo menos não
até agora.
Essa seria, portanto, a diferença entre humanos e máquinas. Um robô, ainda que possa ter uma programação avançada e a capacidade de realizar tarefas que não conseguimos executar, não é capaz de pensar sobre si mesmo, e nem pode colocar em dúvida sua existência. Bem, pelo menos não até agora.
A humanidade das máquinas
O filósofo estadunidense Hilary Putnam (1926 - 2016) elaborou um
experimento mental que ficou conhecido como “cérebro numa cuba”. De
acordo com esse experimento hipotético, deveríamos imaginar que não
possuímos mais uma existência física, um corpo, mas ainda assim
continuamos existindo. Isso seria possível porque nosso cérebro estaria
mantido em uma cuba, sendo alimentado por um supercomputador que tinha a
função de nos lançar em uma realidade simulada. A questão central do
experimento é que, ainda que pareça improvável, se existisse uma
tecnologia para isso e alguém fosse mantido vivo assim, seria impossível
descobrir a verdade. Como Putnam escreveu, o computador pode até mesmo
apresentar esse texto que você está lendo agora como uma pista do que
realmente está ocorrendo, e mesmo assim você continuaria apenas em
dúvida.
Considerando a fragilidade da nossa concepção de existência e o fato de que realmente podemos estar vivendo em uma simulação, o que faz de nós, humanos, realmente superiores às máquinas? Recentemente, a série de televisão Westworld (HBO, 2016) explorou esse mesmo aspecto da questão, mostrando como o limiar entre as pessoas e os androides pode ser difícil de distinguir.
Considerando a fragilidade da nossa concepção de existência e o fato de que realmente podemos estar vivendo em uma simulação, o que faz de nós, humanos, realmente superiores às máquinas? Recentemente, a série de televisão Westworld (HBO, 2016) explorou esse mesmo aspecto da questão, mostrando como o limiar entre as pessoas e os androides pode ser difícil de distinguir.
Mega Man, da mesma forma, se insere em um contexto distópico que
é, ao mesmo tempo, nebuloso e esperançoso para a humanidade. O lado
terrível está no fato de que a ficção apresentada nos games
aponta para um mundo em que as leis da robótica não são suficientes para
garantir a segurança humana. Contudo, nem tudo parece perdido.
Principalmente porque vemos durante os jogos que os robôs podem
expressar sentimentos e se afeiçoar às pessoas, algo menos nefasto do
que poderia ser. Afinal, pelo menos as máquinas conseguem desenvolver
empatia, mostrando que esse não é um sentimento exclusivamente humano.
Diante de todas as questões levantadas pelos jogos, talvez a principal
aqui seja a seguinte: em relação à nossa capacidade de pensar e sentir,
somos realmente tão diferentes do que um robô azul poderia ser?